Vidas Interrompidas

julho 07, 2020

A morte brinca com balas nos dedos gatilhos dos meninos. Dorvi se lembrou do combinado, o juramento feito em voz uníssona, gritando sob o pipocar de tiros:
- A gente combinamos de não morrer!
É assim que Conceição Evaristo começa seu conto: “A gente combinamos de não morrer”. Esse pequeno trecho descreve bastante o projeto direcionado a juventude popular brasileira. Essa juventude que é alvo do poder punitivo, da polícia, que é margilizada, criminalizada.
Dia 18 de Maio 2020, repercutiu nacionalmente o caso do adolescente João Pedro Matos de Pinto, 14 anos, que seguia todas as recomendações em razão da Pandemia, e encontrava-se em casa, mas mesmo assim, foi morto com o tiro na barriga após uma ação policial, tendo desaparecido por horas e reaparecendo no Instituto Legal da sua cidade.
Setembro de 2019, Rio de Janeiro, Ágatha Félix, 8 anos, estava com sua mãe em uma Kombi, no Complexo do Alemão, quando foi atingida e morta.
Madrugada de 12 de Novembro de 2015, Fortaleza, mais especificamente bairros do Cúrio, Messejana, José de Alencar. 11 mortes, 9 adolescentes: Antônio Alisson, 17 anos; Jardel Lima, 17 anos; Alef Souza, 17 anos; Marcelo da Silva Mendes, 17 anos; Patrício João, 16 anos; Jandson Alexandre, 19 anos; Marcelo da Silva Pererira, 17 anos; Renayson Girã, 17 anos. Todos mortos em uma chacina em que 44 PM´S foram denunciados pelo Ministério Público do Ceará, até o momento, nenhum julgamento foram realizados.
Ainda em novembro de 2015, agora dia 28, e o cenário é Rio de Janeiro, cinco jovens: Roberto, Carlos Eduardo, Cleiton, Wilton e Wesley, todos saíram para comemorar o primeiro salário de Roberto, que fazia um mês que trabalhava em um supermercado. Foram alvejados, 111 tiros.
Ceará, 01 de Julho de 2020, Mizael Fernandes da Silva, 13 anos, estava na casa da sua tia, quando na madrugada teve sua casa invadida e enquanto dormia foi assassinado pela Polícia Militar.
Todas as trajetórias mencionadas aqui se entrelaçam sob um aspecto: foram interrompidas por balas compradas pelo Estado. Em todos os casos, a polícia brasileira encontra-se como aquele que disparou contra esses corpos. Inclusive, vários destes casos foram denunciados pelos Ministérios Públicos Estaduais, respectivo a cada estado.
Outro ponto em comum de todas essas histórias é que a família, mesmo em seu momento de luto, fragilizados, tem que justificar que os seus filhos, não tem nenhum envolvimento criminoso, que não têm antecedentes, ou algo do gênero, pois, o discurso do Estado Brasileiro, como demais meios de comunicação é tentar repassar a ideia de que esses jovens exerceram algum tipo de atividade criminosa.
É uma tática de desqualificar as vítimas e os colarem em situações em que justificariam suas mortes e o debate em torno da letalidade policial e outros desdobramentos que poderiam ser feitos nesses casos perdem espaço para a discussão de quem são os verdadeiros “culpados”, os pré-julgados já foram feitos e os corpos já foram criminalizados.
Em resumo, eles tentam categorizar as vítimas como “bandidos” e então assim justificar atitudes tão reprováveis. Mostrando que a morte no Brasil é um problema, entretanto, em alguns casos ela não é urgente porque não é democrática, quando acontece dentro de espaços periféricos. O que contribui com o imaginário popular que esses espaços, são sempre de violência e que são marcados por “faltas”, principalmente pela precariedade material.
Levanta-se ainda um questionamento: mortes violentas são normais desde que os envolvidos possuam passagens pela polícia ou estejam envolvidos com facções?
            Segundo os o Fundo das Nações Unidas para a Infância[1] (UNICEF) divulgou, em 2017, o relatório denominado: Um rosto familiar: A violência na vida de crianças e adolescentes, dados como: a cada 7 minutos morrem em algum lugar do mundo um jovem ou adolescente (10 a 19 anos) por um ato de violência; em 2015, foram 82 mil adolescentes foram vítimas de homicídio.  
Apesar de estes dados serem de 2017, não deixam de ser alarmantes. Até você terminar de ler esse texto, possivelmente outro adolescente foi alvo de violência, outra bala pode ter encontrado algum João, Marcelo, Ágatha, Mizael.
 Retornando ao conto de Conceição Evaristo, “Escrever é uma maneira de sangrar. Acrescento: e de muito sangrar, muito e muito”. Quantos já escreveram usando o sangue desses jovens na mão? De índios? De negros? Quanto ainda terá que se ver sangrar?
É necessário pensar em todas essas trajetórias que foram interrompidas, não esquecer seus nomes. Não podemos banalizar a violência e as mortes dessa maneira. Precisa-se questionar que estrutura é essa em que torna esses jovens alvos, eles são vítimas. Vamos colocar esses jovens como parceiros para construir um mundo melhor e não como vilões.
Rômulo Fonseca[2] quando pensa no extermínio da juventude negra brasileira, questiona: são exterminados porque são pobres/pretos ou são pobres e pretos porque sempre foram alvos destinados ao extermínio?
A infantilização dessas mortes torna a vida quase como um privilégio de somente alguns jovens. Torna-se urgente romper com a estrutura que coloca alvos em determinados grupos. Esses jovens são potências, e estes espaços periféricos não são locais de “faltas” apenas, também são espaços de produção de saberes, cultura, entre outros. E se existem “faltas” a omissão é de quem?
Vamos pensar em nossos espaços de privilégios como contribuir para que os nossos jovens possam sonhar, dormir sem se preocupar em não acordar e que tenham seus corpos livres e não com projétil.
A mídia e o Estado podem vender a ideia de que existe lugares que são destinados à precariedade, colocar esses jovens como alvos, porém, vamos a partir de nossas margens, dar as mãos e sagrar juntos para que esses jovens não precisem mais morrer, que não precisemos mais gritar presente! E nem escrever sobre trajetórias interrompidas.


[1] BRASIL, Fundo das Nações Unidas para a infância. Um rosto familiar: A violência na vida de crianças e adolescentes, 2017.

[2] MORAIS, Romulo Fonseca. O extermínio da juventude popular no Brasil: uma análise sobre os “discursos que matam”. 2016. 185 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências Jurídicas, Belém, 2016. Programa de Pós-Graduação em Direito


Natália Pinto Costa é autora do livro "O crescimento das facções criminosas no Brasil", cearense, pseudo- paraense, advogada na secção OAB/CE, bacharel em  Direito pela Universidade de Fortaleza-UNIFOR e pós Graduada em Direito e Processo Penal do Centro Universitário Unichristus, esta obra veio para trazer propostas de políticas públicas implementadas pelo Ceará e pelo Sistema Único de Segurança Pública.

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