Por que precisamos falar sobre raça
junho 01, 2020
Em fevereiro de 2014 publiquei um post no meu blog. Dei o título
de “Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça”.
O post dizia:
Não estou mais entrando em discussões sobre raça com pessoas
brancas. Não todas as pessoas brancas, apenas a vasta maioria que
recusa a aceitar a legitimidade do racismo estrutural e seus sintomas. Não consigo mais me envolver com o abismo de uma desconexão
emocional que as pessoas brancas exibem quando uma pessoa de
cor fala sobre sua experiência.
Você consegue ver os olhos dessas
pessoas fecharem e endurecerem. É como se melaço fosse despejado
em seus ouvidos, bloqueando seus canais auditivos. É como se eles
não pudessem mais nos ouvir.
Essa desconexão emocional é a conclusão de uma vida absorta do
fato de que sua cor de pele é normal e todas as outras fogem ao padrão.
Na melhor das hipóteses, pessoas brancas foram ensinadas a
não mencionar que pessoas de cor são “diferentes”, no caso de isso
nos ofender. Elas realmente acreditam que as experiências de suas
vidas, resultadas na cor de suas peles, podem e devem ser universais.
Eu simplesmente não consigo me envolver com a perplexidade e a
maneira defensiva enquanto elas tentam lidar com o fato de que nem
todos experimentam o mundo da mesma forma que elas.
Pessoas
brancas nunca tiveram que pensar sobre o que significa, em termos
de poder, ser branco, então todas as vezes em que são vagamente
relembradas desse fato, interpretam isso como uma afronta. Seus
olhos se enchem de tédio ou arregalam de indignação. Suas bocas
começam a se contorcer à medida que vão ficando defensivas.
Suas
gargantas se abrem enquanto elas tentam interromper, ansiosas para
falar em cima de você sem realmente escutar, porque elas precisam
informar que você entendeu tudo errado. A jornada para entender o racismo estrutural ainda exige que as
pessoas de cor priorizem os sentimentos brancos. Mesmo que eles
consigam te ouvir, eles não estão realmente escutando. É como
se alguma coisa acontecesse com as palavras assim que elas saem
de nossas bocas e chegam aos ouvidos. As palavras atingem uma
barreira de negação e não passam desse ponto.
Essa é a desconexão emocional. Não é muito surpreendente, porque eles nunca entenderam o que significa acolher uma pessoa
de cor como uma igual, com pensamentos e sentimentos que são
tão válidos quanto os seus. Assistindo The Color of Fear, de Lee
Mun Wah, vi pessoas de cor se debulhando em lágrimas enquanto
tentavam convencer um homem branco e provocador de que suas
palavras estavam reforçando e perpetuando um padrão branco e
racista. O tempo todo ele olhava de forma alheia, completamente
confuso diante dessa dor, na melhor das hipóteses, banazilando-a,
e, na pior, ridicularizando-a.
Já escrevi sobre essa negação branca ser a política de raça onipresente que opera sobre sua invisibilidade inerente.
Então não posso
mais conversar com pessoas brancas sobre raça por causa das consequentes negações, estranhas piruetas e acrobacias mentais que
elas demonstram quando esse assunto é posto em pauta. Quem
realmente gostaria de ser alertado sobre um sistema estrutural que
o beneficia às custas de outros?
Eu não consigo mais ter essa conversa, porque estamos chegando
a ela de lugares completamente diferentes. Eu não posso ter uma
conversa com as pessoas sobre detalhes de um problema se elas
sequer reconhecem que o problema existe. Pior ainda é a pessoa
branca que pode estar disposta a considerar a possibilidade do
racismo dito, mas que pensa que entramos nessa conversa como
iguais. Nós não entramos.
Sem mencionar que entrar em uma conversa com pessoas brancas provocadoras é uma tarefa, francamente, perigosa para mim.
À medida que as hostilidades aumentam e a provocação cresce,
tenho que seguir com muito cuidado, porque se eu demonstrar
frustração, raiva ou exasperação por sua recusa em entender, elas
vão recorrer aos estereótipos racistas sobre pessoas negras e raivosas que são uma ameaça a elas e à sua segurança. É bem provável que
elas me pintem como uma valentona ou uma abusadora. Também
é provável que seus amigos brancos se juntem a elas, reescrevam
a história e transformem mentiras em verdades.
Tentar conversar
com elas e navegar pelo seu racismo não vale a pena.
Em meio a toda conversa sobre “pessoas brancas que são gentis” se
sentindo silenciadas por conversas sobre raça, existe uma espécie
de ironia e evidente falta de compreensão ou empatia por nós que
fomos visivelmente marcados como diferentes durante toda nossa
vida e que vivemos com as consequências disso. É realmente uma
vida inteira de autocensura que as pessoas de cor têm que viver.
As opções são: falar sua verdade e encarar a represália, ou morder
sua língua e progredir na vida. Deve ser uma vida estranha, sempre
tendo permissão para falar e se sentindo indignado quando você
finalmente é convidado a ouvir.
Decorre do direito dos brancos de
nunca serem questionados, suponho.
Eu não posso mais continuar a me exaurir emocionalmente tentando
passar essa mensagem, ao mesmo tempo em que me deparo com
uma linha bem precária que tenta não implicar qualquer pessoa
branca, em seu papel de perpetuador de um racismo estrutural,
com receio de ser assassinada.
Então eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça.
Eu
não tenho o imenso poder de mudar a forma como o mundo funciona, mas posso estabelecer limites. Posso suspender o direito que
elas sentem em relação a mim e vou começar parando a conversa.
A balança tende demais a favor delas. Suas intenções muitas vezes
não são de ouvir e aprender, mas exercer seu poder, provar que
estou errada, me drenar emocionalmente e reequilibrar o status
quo.
Eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça a não
ser que eu realmente precise. Se tiver alguma matéria ou aparição
em conferência que significa que alguém pode ouvir o que estou
dizendo e se sentir menos solitária, então eu participarei. Mas não
lido mais com pessoas que não querem ouvir, que desejam ridicularizar e que, francamente, não merecem.
Depois que eu cliquei em “publicar”, o post ganhou vida própria. Anos depois, eu ainda conheci novas pessoas, em diferentes
países e diferentes situações, que me contaram que leram o texto.
Em 2014, enquanto o post era compartilhado em toda a internet, eu me preparei para a habitual onda de comentários racistas.
Mas a resposta foi nitidamente diferente, tão diferente que me
surpreendeu.
Houve uma clara divisão racial na forma como o post foi recebido. Recebi várias mensagens de pessoas negras e pardas.
Foram tantos “obrigado” e vários “você falou sobre minhas experiências”. Houve relatos de lágrimas e um pequeno debate sobre
como abordar o problema, com educação sendo classificada como
uma solução para preencher a lacuna da comunicação. Ler essas
mensagens foi um alívio. Eu entendia como era difícil colocar
esse sentimento de frustração em palavras, então quando pessoas
entraram em contato e me agradeceram por explicar uma coisa
que elas sempre tiveram dificuldade, fiquei feliz que o post foi
útil a elas.
Eu sabia que se eu estava me sentindo menos sozinha,
então elas também estavam.
O que eu não estava esperando foi a avalanche de emoções
vindas de pessoas brancas que sentiram que, ao decidir parar de
conversar com pessoas brancas sobre raça, eu estava tirando algo
do mundo e que isso era uma tragédia absoluta. “De partir o coração” parecia a melhor expressão para descrever esse sentimento.
“Sinto muito mesmo que você tenha sido levada a se sentir
dessa forma”, uma pessoa comentou. “Como uma pessoa branca,
estou dolorosamente envergonhada pelo privilégio sistêmico que
negamos e gozamos diariamente. E tão vergonhoso que eu nem
havia percebido até dez anos atrás.”
Outro comentarista implorou: “Não pare de conversar com pessoas brancas, sua voz é precisa e importante e existem maneiras de
fazê-la passar.” Outro, dessa vez uma pessoa negra, dizia: “Seria
uma tarefa dolorosa persuadir as pessoas, mas nós não devemos
parar.” E um último e definitivo comentário dizia simplesmente:
“Por favor não desista das pessoas brancas.”
Apesar de essas respostas serem sistêmicas, elas eram evidências
da mesma lacuna de comunicação que eu havia escrito a respeito
no post do blog. Elas pareciam uma falta de compreensão a respeito
de para quem esse texto foi escrito. Ele nunca foi escrito com a
intenção de propagar culpa nas pessoas brancas, ou de provocar
qualquer tipo de epifania. Eu não sabia, naquela época, que eu
havia inadvertidamente escrito uma carta de término para a branquitude.
E eu não esperava que os leitores brancos fossem fazer
na internet o equivalente a ficar do lado de fora do meu quarto,
com uma caixa de som e um buquê de flores, confessando suas
falhas e erros, me implorando para não deixá-los. Tudo isso pareceu estranho e ligeiramente desconfortável para mim. Porque, ao
escrever aquele post, como se estivesse dizendo que bastava para
mim; não foi um pedido de ajuda ou um clamor pela compreensão e compaixão das pessoas brancas. Não foi um convite para
os brancos se entregarem à autoflagelação. Eu parei de falar sobre
raça com pessoas brancas porque eu não acredito que desistir é
um sinal de fraqueza. Às vezes é sobre autopreservação.
Eu transformei “Por que eu não converso mais com pessoasbrancas sobre raça” em um livro – paradoxalmente – para continuar a conversa.
Desde que eu estabeleci meu limite, tenho feito
pouco além de falar sobre raça – em festivais de música e estúdios
de TV, para pupilos de escolas secundaristas e conferências de
partidos políticos – e a demanda por essa conversa não mostra
sinais de enfraquecimento. As pessoas querem falar sobre isso. Esse
livro é produto de cinco anos de agitação, frustração, explicações
exaustivas, e longos parágrafos em comentários no Facebook. É
sobre não apenas o lado explícito, mas sobre o lado escorregadio
do racismo – os detalhes que são difíceis de definir, e os detalhes
que te fazem duvidar de você mesmo.
A Grã-Bretanha ainda está
profundamente desconfortável com raça e diferença.
Desde que eu escrevi aquele post em 2014, as coisas mudaram
bastante para mim. Agora eu passo a maior parte do tempo conversando com pessoas brancas sobre raça. O mercado editorial é
muito branco, então não existiria uma maneira de publicar esse livro sem conversar com pelo menos algumas pessoas brancas
sobre raça.
Sou ciente da raça apenas
porque fui rigorosamente marcada como diferente pelo mundo que
conheço desde que me lembro. Embora eu analise a branquitude
invisível e reflita frequentemente sobre sua natureza excludente,
observo como uma outsider. Entendo que esse não é o caso para
a maior parte das pessoas brancas, que passam pelo mundo alegremente alheias de sua própria raça até que sua dominância seja
posta em xeque.
Quando pessoas brancas pegam uma revista, navegam na internet, leem um jornal ou zapeiam na TV, nunca
é raro ou estranho ver pessoas que se parecem com elas mesmas
em posições de poder ou exalando autoridade. Na cultura, em
particular, as afirmações positivas de branquitude são tão difundidas que a pessoa branca comum sequer as nota. Em vez disso,
essas afirmações são tranquilamente consumidas. Ser branco é ser
humano, ser branco é universal. Eu só sei disso porque não sou.
Nunca vou me impedir de falar sobre raça. Cada voz levantada
contra o racismo afasta seu poder. Nós não podemos nos permitir
ficar em silêncio.
Reni Eddo-Lodge é uma premiada jornalista britânica. Ela já escreveu para o New York Times, the Voice, Daily Telegraph, Guardian, Independent, Stylist, the Pool, Dazed and Confused, e New Humanist. Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça é seu primeiro livro.
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