O que é o feminismo Abya Yala?
novembro 25, 2019
A terminologia Abya Yala, segundo
Francesca Gargallo[1], reporta ao diálogo
travado com as mulheres dos povos originários da América Latina e às reflexões
que se sustentam de outros lugares de enunciação a fim de questionar a ideia de
que o conhecimento se constrói e se transmite só no espaço de formalização do
saber, como se dá com a academia, que é um espaço de construção da cultura
letrada.
Nesta perspectiva, o estudo das
práticas e ideologias advindas de outras formas de construção do movimento
feminista amplia os horizontes de abordagem da temática, que se estrutura fora
do eixo europeu e de maneira diversa da apregoada pelo pensamento modernista
patriarcal.
O movimento feminista Abya Yala
coloca em xeque a teoria da existência de uma história única, de um feminismo
universal e de um jeito ideal de se fazer ciência. A própria ideia de ciência é
questionada, à medida em que se estendem sob os olhos outras formas, igualmente
eficientes, de se produzir conhecimento e que, para serem devidamente
compreendidas, exigem, respectivamente, um alargamento da ideia de centralidade
e um estreitamento da noção de universalidade.
Qual é o perigo de se acreditar em uma história única?
Chimamanda Ngozi[2]
aborda com primor esta temática narrando a sua própria trajetória e formação,
primeiro como leitora e depois como escritora. Neste contexto ela identifica os
traços de uma construção ideológica que induz a pensar que só existe um jeito,
um único jeito correto, de se contar uma história. As influências literárias e
acadêmicas formaram nela uma noção desvirtuada de que uma história só poderia
ser correta se estruturada nos moldes do colonizador, já que estas eram as
únicas histórias que eram divulgadas, lidas, repercutidas e insistentemente
endeusadas.
Quando se dá conta de que haviam
outras formas de se escrever uma história, o que ocorre quando de sua
descoberta de autores africanos e africanas, que partiam em sua escrita do
lugar de onde estavam e reproduziam em seus livros outra cultura, uma cultura
colonizada e menosprezada, Chimamanda percebe que estava enredada por uma teia
poderosa que só valorizava a história construída pelo colonizador. Mas,
inquieta, se rebela contra isso e decide construir suas histórias partindo
também do lugar de onde estava, da realidade conhecida de perto, embora
menosprezada pelo pensamento centralizador europeu. Este giro ideológico abre
espaço para hoje o mundo inteiro se deslumbre com obras consagradas
internacionalmente e que retratam vivências de um povo subalternizado. Que teve
sua genialidade obliterada e que sua cultura associada ao que não é importante,
digno e considerável.
Achille Mbembe[3],
ao estudar este fenômeno, da construção do “negro”, acondiciona esta expressão
linguística ao que não é humano, ao que não é sujeito, ao que está no escuro,
ao que é animalizado e portanto, não capacitado para transcender. Quando se
percebe que esta é só uma forma de se construir narrativas, e que há outros
modos e perspectivas igualmente consideráveis e relevantes, passa-se a se
questionar o benefício da crença em uma história única. Quão benéfica esta
realmente pode ser, à medida que se sobrepõe a todas as outras narrativas e desencoraja,
inclusive, a construção das mesmas?
O perigo de se considerar correta
a tese de que existe uma única história está no fato de, ao se partir deste
pressuposto, todo o resto deixa de ser importante e considerável. Se aquele é a
única narrativa possível, e, portanto, a única válida, porque ainda pensar e
produzir? Já colocaram em minhas mãos a resposta correta. Não preciso ir além,
já basta.
Este mesmo perigo também se
materializa quando se trata da construção da ideia de ciência, aqui também há a
equivocada noção de uma ciência única, que se estrutura em bases colonizadoras
e que só deve ser considerada como tal se permeada por objetividade e
racionalidade.
Esta é uma estratégia muito
utilizada pelo processo de colonização, considerando que este se estende até os
dias atuais se valendo de outras formas, mais robustas do que a mera dominação
territorial. A construção de uma ideologia que valoriza só que o que vem do
colonizador, que só considera importante e racional o que é importado do
pequeno continente europeu, fere de morte a construção de narrativas outras,
igualmente importantes e senão mais adequadas e aplicáveis aos povos que
cresceram e se formaram sobre costumes e relações sociais, políticas e
históricas diversas daquelas dos colonizadores.
Porque é errado considerar a existência de um feminismo universal?
Francesca Gargallo, em sua
pesquisa, dialoga com mulheres de mais de 600 povos e nacionalidades
originárias da América Latina. Para além disso, imaginemos a quantidade de
povos de ascendência africana espalhados por todas as Américas e outras partes
do mundo. Indo um pouco mais longe, consideremos os povos africanos e as
vivências das mulheres localizadas em cada uma dessas regiões. Diante disso,
como considerar a existência de um feminismo universal? É claro que há pontos
de contato nas lutas de mulheres de todo o mundo, mas certamente há inúmeros
aspectos diferenciados e altamente relevantes para regiões, culturas e povos.
Ao se insistir em uma
universalização do feminismo, muitas demandas específicas de culturas e povos,
principalmente dos subalternizados, acabam sendo preteridas e colocadas à
margem. Concentram-se esforços em destacar, por óbvio, as demandas de grupos
feministas privilegiados, de mulheres brancas e de classes abastadas, cujas
demandas se localizam em outros patamares, como liberdade sexual, direitos de
gestão sobre o próprio corpo, legalização do aborto, dentre outras. Enquanto,
muitas das demandas de mulheres pertencentes a grupos subalternizados,
relacionam-se a questões que envolvem o extermínio de seus filhos pela polícia (sobretudo
para a comunidade negra), melhores condições de saúde para a comunidade local,
implementação de medidas voltadas para saneamento básico e preservação
ambiental, oportunidades de emprego para seus pares, respeito à cultura dos
povos locais, valorização de práticas ancestrais e muitas outras, diferentes
entre si, porém igualmente relevantes e urgentes.
A falsa crença em um feminismo
universal invisibiliza ideologias e práticas políticas e sociais outras, que
por serem atreladas a grupos subalternizados acabam caindo na vala comum do que
merece ser desconsiderado, ocultado.
Ao se entender que há feminismos
específicos e plurais, como específicas e plurais são as mulheres,
considerando-se aqui “mulher” em seu sentido múltiplo e amplo, acolhendo lutas
de pessoas trans e demandas que transcendem a ideia tradicional de feminino, se
pretende redirecionar o foco da lente para demandas também específicas e essenciais,
que reverberam em grupos colonizados mas que são invisibilizadas pelos
opressores. As implicações de se aceitar a ideia de que existem outros
feminismos exige movimento, mudança e retirada da zona de conforto, o que pode
não ser muito agradável, mas é extremamente necessário.
Se existe uma idealização do que é ciência, a quem ela beneficia?
Na academia, numa visão
patriarcal e europeizada, é o local onde se constrói conhecimento, de onde
emerge o saber mais puro e imparcial. Espaço dominado pela racionalidade e
objetividade. O contraponto disto é o resto todo. Há uma forte tendência em se
compreender que o que está fora da academia pode ser tudo, menos racional e
objetivo e, portanto, não será visto como científico.
Essa higienização do saber
insiste em preconizar o conhecimento como algo superior e pertencente a um
grupo composto por poucos escolhidos. Estes são os detentores das ideias
racionais que conduzirão a humanidade para êxito existencial.
Nesta perspectiva, tudo o que é subjetivo,
passional, parcial é tido por impuro, não científico, e, por conta disso, deve
se localizar em outros lugares, fora da academia. Entretanto, ao considerar
esta uma verdade única, diversas construções ideológicas, políticas, sociais e
humanísticas são deixadas de fora da noção de ciência. Esta retirada forçada
tem sérias implicações sobre a estruturação do pensamento e da prática
feminista, muitas vezes marcada por mobilizações passionais, pragmáticas e
altamente subjetivistas.
Faz-se necessária uma
reformulação da ideia de ciência, do que deve ou pode ser considerado
científico. Entretanto, esta operação não pode ser meramente linguística,
precisa reverberar em uma transformação fundamental nas estruturas do que é
entendido como conhecimento. Será que somente práticas racionalizadas e
imparciais devem ocupar o espaço acadêmico? Caso a resposta seja positiva, há
que se deixar tudo como está. Mas, se, por um acaso, a resposta for negativa, implicações
outras deverão advir desta constatação. Uma abertura para o novo deve encontrar
suporte entre os próprios acadêmicos e a mudança deverá ocorrer de dentro para
fora.
O feminismo Abya Yala toca neste
ponto da ferida sem cerimônias e escancara a necessidade de uma modificação do
eixo, deixando de ser a Europa, sua ideia de modernidade e seu apego à
narrativas colonizadoras, o centro de tudo e de todos. Abrindo espaço para
outras práticas cognitivas e radicalmente transformadoras.
No Brasil, já na década de 1980,
Lélia Gonzalez[4] afirmava a importância da
categoria de Amefricanidade, destacando que seu valor metodológico assentava-se
no fato de permitir o resgate de uma unidade específica e destacando, embasada
em M.K. Asante[5], que “uma ideologia de
libertação deve encontrar sua experiência em nós mesmos; ela não pode ser
externa a nós e imposta por outros que não nós próprios; deve ser derivada da
nossa experiência histórica e cultural particular”.
Nesta mesma frequência, o grito
do feminismo Abya Yala se faz ouvir para além, ecoa forte e urgente, exigindo
atenção e estudo acurado.
Conclusão
O feminismo Abya Yala se
apresenta como uma proposta revolucionária, que envolve a percepção de sujeitos
coletivos e incapazes de se conformar com a história única, contada, pisada e
repisada mundo afora, de que somente o que importa é o que emana do
colonizador, de que só é imparcial, racional, objetivo deve ser considerado
científico.
Nas bases do feminismo Abya Yala
encontram-se ideais de libertação que exigem outras narrativas e outras formas
de entender o conhecimento, seus reflexos sobre a realidade e sua parcela de
subjetividade, componente essencial da própria racionalidade.
Ao catalogar experiências de
mulheres pertencentes a grupos latino-americanos subalternizados, colonizados,
oprimidos, Francesca Gargallo acende uma centelha que precisa ser propagada e
incendiar velhas tradições, queimar pensamentos obtusos e expurgar epistemes
herméticas e obsoletas.
[1] Celentani, Francesca
Gargallo. Feminismos desde Abya Yala. Ideas y proposiciones de las mujeres de
607 pueblos en nuestra América.
Editorial Corte y Confección, Ciudade de México, 2014.
[2] Ted realizado por
Chimamanda Ngozi Adichie, intitulado “O perigo da história única”. Disponível
no site www.ted.com e consultado em
08/09/2018.
[3] MBEMBE, Achille. Crítica
da Razão Negra. Editora N-1 Edições. São Paulo, 2018.
[4] GONZALEZ, Lélia. A
categoria político-cultural de Amefricanidade. Ver. TB. P. 69/82. Rio de
Janeiro, 1992/1993.
[5] ASANTE, Molefi K.
Afrocentricity. Trenton, Africa World Press, 1988.
Maria Angélica dos Santos é autora do livro O lado negro do empreendedorismo: afroempreendedorismo e black money. É graduada em Direito pela UFMG, mestre em Direito Público pela PUCMinas (período em que foi bolsista do Lincoln Institute of Land Policy), doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Direito da UFMG, com tese relacionada às trajetórias negras na Faculdade de Direito da UFMG, professora universitária desde 2002, leciona atualmente as disciplinas de Direito Empresarial da Universidade Salgado de Oliveira – UNIVERSO BH.
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