Democracia racial: o mito que invisibiliza a branquitude

novembro 08, 2019



Gostaria de convidar a leitora e o leitor, antes de falarmos brevemente sobre o mito da democracia racial, a refletir sobre o fenômeno do racismo como um projeto político-racial. Talvez vocês possam estranhar essa relação entre política e raça, no entanto, esse estranhamento não deveria ocorrer. Há muito o fenômeno do racismo deixou de ser observado apenas como resultado de ações individuais desviantes para ser refletido a partir de uma perspectiva mais ampla. 

Cito aqui o próprio Gilberto Freyre que, ao explicar o fator racial na política contemporânea brasileira, em 1965, na Universidade de Sussex, na Inglaterra, apresentou o projeto político-racial escolhido pelo estado brasileiro a partir da década de 30 consistente em uma atitude política inspirada não pela raça, mas pelo crescente desprezo pela raça

Esse projeto, o antropólogo argumenta, possibilitou a solução de problemas relacionados à integração racial sem tornar-se vítima de ódio racial ou preconceito racial como no passado recente dos Estados Unidos, da África do Sul ou ainda da Alemanha nazista. Assim, teríamos uma sociedade multirracial na composição étnica de sua população, porém, (...) metarracial na sua consciência (...) e, inclusive, [no] seu comportamento político. O estilo político de desenvolvimento da civilização brasileira, que deveria ser visto como exemplo de modelo de integração racial para outras nações, envolvia a interpenetração de culturas, no plano sociológico e, no plano biológico, a miscigenação.

Ora, se eu afirmei que o fenômeno do racismo é um fenômeno também político-racial, quais são as implicações dessa afirmação para compreendermos o mito da democracia racial? É que a expressão projeto político-racial indica que os mecanismos de dominação racial não são universais, mas sim produtos de contextos específicos. Eles não possuem uma natureza estática, mas sofrem transformações na medida em que são contestados politicamente, intelectualmente e juridicamente. 

Dessa forma, projetos político-raciais podem ser classificados como meios pelos quais diferentes formas de hegemonias raciais são criadas e recriadas dentro de uma sociedade. Um projeto político-racial pode ser compreendido como uma dinâmica social que compreende práticas discursivas e estruturas sociais, determinando assim como as experiências cotidianas são racialmente organizadas. Isso nos permite realizar uma análise em que é possível interpretar, representar ou explicar a dinâmica racial no Brasil e perceber o esforço deste projeto para reorganizar e redistribuir os recursos ao longo das linhas raciais específicas, inclusive privilégios raciais injustos.

Uma vez que argumentei pelo racismo enquanto projeto político-racial passemos a compreender no que consiste o mito da democracia racial. Trata-se, na realidade, de um quadro ideológico de contestação racial dominante - com efeitos concretos - segundo o qual, em razão da miscigenação o Brasil não possuiria problemas relacionados ao racismo e as desigualdades sociais entre brancos e negros poderiam ser explicadas em razão das disparidades de classe

É sobretudo a partir de Casa Grande e Senzala (1933) que Gilberto Freyre, seu autor, passou a influenciar toda uma geração de historiadores, antropólogos e sociólogos das relações raciais. Freyre, ainda, transformou esta ideologia em um aspecto central do nacionalismo brasileiro, conferindo-lhe um status científico, literário e cultural. Esse discurso da democracia racial, que passarei a chama-lo de discurso metarracial, pode ser articulado de diversas formas. 

Disso advém a possibilidade de argumentar pelo metarracialismo literário, metarracialismo político, metarracialismo cultural e, evidentemente, pelo metarracialismo jurídico. Cada um tem a sua maneira particular de entender este fenômeno. Porém, através desta perspectiva metarracial, todos compartilham da ideia segundo a qual o Brasil superou problemas relacionados a animosidades raciais – como aquelas enfrentadas na Alemanha Nazista, nos Estados Unidos ou na África do Sul – na medida em que operou em nossa sociedade a interpenetração das culturas indígenas, africanas e europeias no plano sociológico e a miscigenação das raças no plano biológico. Interessante, não?

Contudo, na medida em que assumimos que projetos político-raciais são dinâmicos, faço outro questionamento as leitoras e aos leitores: qual foi o projeto político-racial adotado antes do surgimento do projeto da democracia racial ou projeto político-metarracial de 1930? Provavelmente, muitos responderão que foi a escravidão. E a resposta está parcialmente correta. Isto por que os projetos político-raciais não são excludentes na sua dinâmica, eles dialogam entre si. No entanto, entre o final da escravidão e o predomínio do discurso da democracia racial, houve um projeto de branqueamento pouco refletido quando falamos sobre democracia racial. Tendo em vista que não posso me alongar sobre este tema, farei como João Batista Lacerda quando de sua participação representando o Brasil no I Congresso Universal das Raças.

Lacerda ilustrou seu artigo sobre branqueamento com a famosa obra A Redenção de Cam (1895), do artista Modesto Brocos, para demonstrar o projeto político-racial que estava sendo desenvolvido pelo Brasil com o fim da escravidão. Lacerda descreveu a imagem da seguinte maneira: “O negro passando a branco, na terceira geração, por efeito do cruzamento de raças”

No mesmo artigo, afirmou que, com este projeto político, em 2011 a população do Brasil seria representada, na maior parte, pelos indivíduos de raça branca, latina, e, ao mesmo tempo, o negro e o índio estariam sem dúvida desaparecidos do país que acredita na democracia racial. O Brasil, naquele momento histórico, inspirava-se na Europa branca quanto ao seu processo civilizatório.

A relação entre estes dois projetos político-raciais, qual seja, o do branqueamento e de democracia racial, é bastante íntima e demonstra, de certa forma, a dificuldade da sociedade brasileira em compreender como a ideia da democracia racial invisibiliza processos cumulativos de privilégios injustos com relação ao grupo racial branco.

 Se durante a escravidão seres humanos de pele preta foram considerados objetos de direitos enquanto os de pele branca, sujeitos de direitos, se durante o período do branqueamento, seres humanos de pele preta deveriam ser extintos pelo processo de miscigenação enquanto os de pele branca deveriam ser visto como exemplo a ser seguido, qual seria o papel de um discurso metarracial, de democracia racial numa sociedade profundamente desigual?

O movimento negro, de certa forma, já conseguiu demonstrar que a democracia racial é um mito ao desvelar os processos de discriminações veladas e ostensivas porque negros e negras sofrem nesse país, mas há uma outra dimensão deste mito que devemos questionar. Denomina-se branquitude a cumulação de privilégios raciais injustos pelo grupo racial branco em razão do racismo. 

Se é verdade que o Brasil só prende os três “pês”; pobre, preto e puta, o contrário dessa afirmação refletida sobre a dimensão da branquitude poderá nos levar a reflexões mais honestas sobre o por quê de negros e negras ainda estarem sub-presentados em espaços de poder e hiper-presentados em espaços subalternos, invisibilizados nas suas produções intelectuais e hiper-valorizados quando na ótica da produção intelectual branca e tantas outras dimensões sociais. 

Daí por que o mito da democracia racial, além de invisibilizar o questionamento da discriminação racial opera também efetivamente na invisibilização da branquitude, que não se percebe racializada e sim, cidadã universal que nunca contemplou nossa negritude.

Tiago Vinicius A. dos Santos é autor do livro Desigualdade Racial Midiática. A obra faz uma análise sobre a Teoria Racial Crítica, do direito norte-americano, e sua aplicação de acordo com a realidade brasileira. O livro discorre sobre os quadros ideológicos de contestação racial para compreendermos a realidade material e ideológica atual em torno de raça e direito e sua relação com o tema Desigualdade Racial Midiática. Você pode adquirir seu exemplar clicando aqui.

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