Insurgindo em palavras

outubro 03, 2019





A PEC 55, antiga 241, foi aprovada com 53 votos a favor em segunda votação realizada em sessão plenária do Senado. Tal medida que criou teto para o gasto público já havia sido aprovado em primeira votação no mês anterior (novembro de 2016) e foi promulgada no fim do mesmo ano. Nos dias das deliberações legislativas, duas grandes manifestações contrárias ao projeto de emenda ganharam forma por intermédio de outros atos e ocupações de estudantes em diferentes unidades de ensino do país: a de 29 de novembro e a de 13 de dezembro de 2016, realizadas nos arredores do Congresso Nacional, em Brasília. 

Meses depois, no centro de Goiânia, outro protesto resultante de uma greve geral também ganhou espaço, porém com objetivos diferentes (ou nem tanto assim). No dia 28 de abril de 2017, diversos estudantes, docentes, grupos organizados e trabalhadores em geral se reuniram para realizar uma manifestação contra a reforma trabalhista e a reforma previdenciária propostas pelo governo Temer. Ambos os cenários de protestos decorreram em tempos diferentes, com motivações diferentes, e em um contexto espacial diferente. Contudo, há um complexo jogo de ações nas duas narrativas que veio instrumentalizado por fumaça, tiros de borracha e sangue: a repressão policial e a força coercitiva deste instrumento de violência. Diversas histórias surgiram entre as violências destas manifestações, mas existem vozes sufocadas com ânsia de projeção. 

E como eu sei disso? Bem, uma dessas vozes é a minha. Eu estava lá. Estava em Brasília. Estava em Goiânia. Estava no momento em que o estudante de Ciências Sociais caiu no chão asfaltado da Praça do Bandeirante, ensanguentado e inconsciente. Em ambos os contextos, sofri e presenciei a repressão. Em Brasília, uma bomba de gás lacrimogêneo foi arremessada a poucos metros do meu corpo e infelizmente não consegui fugir a tempo. Fiquei à deriva da limitação de meus movimentos, que não foram rápidos o suficiente para impedir a disseminação da fumaça em volta e dentro de meu corpo. Senti meus pulmões se fecharam. Senti o medo tomar conta das minhas percepções. Fechei-me. 

No entanto, quando você tem consciência, ela te cobra. A voz que estava sufocada dentro de mim exigiu-me a tarefa de registrar com mais afinco outras repressões que aconteceram dentro dos mesmos contextos, de maneira a inferir novos significados e buscar traços de confluência entre as histórias. Foi necessário buscar o “eu” no “nós”. Foi necessário entender os processos históricos antecedentes. Foi necessário coragem.  

“Insurgência: crônicas da repressão” é um projeto experimental (fruto de um TCC) construído no formato de um livro-reportagem sob a ótica de vítimas que sofreram repressão policial em Brasília, no dia 29 de novembro e 13 de dezembro de 2016, e em Goiânia, no dia 28 de abril de 2017. O objetivo foi, por meio de crônicas (breves textos), formular uma crônica maior sobre a violência policial, no sentido de compreender as motivações dos agentes coercitivos, compreender as consequências na vida dos sujeitos-vítimas (e da sociedade como um todo, levando para o lado simbólico sobre o que o ato de manifestar representa) e compreender a experiência que é passar por esse tipo de repressão. 

Não só isso: o objetivo central também foi o de criar condições para enxergar, por meio do Jornalismo e da Literatura, um futuro em que as nossas histórias não são apagadas e nem distorcidas; encontrar no livro-reportagem um instrumento de esperança. Um grito feito por vários outros. Um grito de contrariedade à atual e distópica conjuntura política. Um grito de insurgência.

Contudo, quando você entra de corpo e alma em um contexto caótico, acaba encontrando mais perguntas do que respostas. Acaba encontrando possibilidades de trajeto mais honestos com a nossa própria experiência de vida. As crônicas de repressão foram embasadas especificamente em histórias da luta estudantil na Universidade Federal de Goiás e eu só fui perceber isso quando já havia realizado metade das entrevistas. Pensei comigo "pera aí, essa história é de um grupo específico. São todos jovens. São todos estudantes. Eu preciso levar isso em conta na própria narrativa". E levei. 

Também percebi que, para entender o presente e o possível futuro, é necessário conhecer o passado. Todos os tempos compõem a mesma linha narrativa e, por abordá-las, acabei aprofundando ainda mais o presente da "trama" e revelando-o com mais precisão.

Após realizar todas as entrevistas, decidi estruturar o livro com base nesses sentimentos que emergiram em mim. Principalmente o sentimento de confusão e da quebra de memória causada pelo gás lacrimogêneo físico e pelo gás lacrimogêneo simbólico (o do cotidiano, o que nos reprime sem a gente nem perceber direito. O que paira na história e cristaliza no passado, no presente e no futuro). Quando vi, uma crônica gradativamente puxava a outra até formar uma grande história-mor, interligada por referenciais sutis e por vezes diretos. São crônicas que, juntas, acabaram formando uma só, tendo como ponto de partida a experiência de Mateus Ferreira, jovem estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás que sofreu traumatismo cranioencefálico e se tornou notícia no país todo. 

Foi ali que eu senti a repressão de verdade, mesmo o golpe de cassetete não tendo sido desferido contra o meu corpo. É um símbolo que instrumentalizei como o ponto de partida para o livro-reportagem. A partir do momento em que o Mateus finalmente acorda, os escritos alinham outras histórias que não tiveram a mesma visibilidade, mas que carregam consigo significados que somam forças para buscar as respostas para tantas perguntas.

A sensação é a de estar a poucos metros do acontecimento ou, até mesmo, entrar no "eu" e experimentar a sofreguidão, a angústia e a penúria. Ou seja, a estratégia é a de gerar empatia "instantânea", de sentir como se o "eu" fosse o "eu" de quem lê os escritos. Já a terceira pessoa promove um certo distanciamento para que o personagem descrito tenha "vida própria". Ela é ela, ele é ele, e o leitor é o leitor. Dessa maneira, o leitor percebe o panorama geral das manifestações, entende a história singular do personagem descrito em determinada crônica, tem ânsia em saber mais sobre os acontecimentos que seguem a trama e "constrói a empatia" com base nisso. Ambas as estratégias têm a intenção de humanizar os relatos, mesmo sendo geradas em moldes diferentes.

"Insurgência" não é um lamento. Com o próprio nome diz, é um grito eufórico de insurreições cotidianas. É um grito da literatura e é um grito do jornalismo. É a junção entre conteúdo e a forma. É a ação sendo narrada em prol da mensagem-mor, que corresponde à crônica "guarda-chuva": a criminalização dos movimentos sociais e da luta estudantil. É o que esse livro é. O corpo é a sombra da alma e as crônicas são sombras de nós.

Bruno Destéfano nasceu em Inhumas (GO) no dia 9 de junho de 1995. Mudou-se para Goiânia no início de 2015 com o objetivo de cursar Jornalismo na Universidade Federal de Goiás. Acredita no poder da escrita e, sobretudo, da escuta, para subverter os moldes da comunicação social.Geralmente se perde em devaneios, mas sempre volta. "Insurgência: Crônicas de Repressão" é seu primeiro livro publicado pela Editora Letramento.

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