Horizontes de transformação
agosto 23, 2019
Por Ana Claúdia Jaquetto Pereira
Intelectuais negras são autoras de projetos originais de transformação da sociedade e do Estado. Historicamente excluídas da educação formal e mais ainda de espaços acadêmicos, este é um fato pouco reconhecido. Contudo, no caso do Brasil, a consolidação de um movimento de mulheres negras ao longo das décadas de 1970 e 1980 criou um espaço de formulação e intercâmbio de ideias encontradas no cotidiano das mulheres negras, estivessem elas ou não ligadas às universidades. São estas as ideias que analiso no livro “Intelectuais negras brasileiras: horizontes políticos”.
Ao revisarmos a produção das ciências sociais brasileiras, encontramos pouquíssimos trabalhos que enxergam as mulheres negras como agentes do conhecimento. De fato, na vertente conhecida como “pensamento social brasileiro”, que reúne autores proeminentes como Nina Rodrigues, Paulo Prado, Oliveira Viana e Gilberto Freyre, encontramos frequentes representações estereotipadas, que associam as mulheres negras ao trabalho de cuidado alheio, ao afeto e ao desejo sexual masculino. Desprezam, assim outras dimensões da vida que a historiografia brasileira se esforçaria para recuperar, principalmente a partir dos anos 1980: mulheres escravizadas que buscavam recuperar filhas/os e irmãs/irmãos vendidas/os, que se apegavam ou se vingavam das crianças brancas que eram obrigadas a amamentar, alforriadas que deixavam heranças para outras negras, capoeiristas, africanas mina que tentavam se divorciar no século XIX, comerciantes que movimentavam a economia do contrabando ou que disputavam espaços nas ruas, assassinas, líderes de revoltas.
A chegada de estudantes negras às universidades em maior número ao longo dos anos 2000 tem impulsionado o questionamento de visões estereotipadas. Como mulher negra, cientista política e pesquisadora, não foram poucas as frustrações que experimentei ao notar a pouca conexão da teoria política e dos estudos de gênero e feministas com a realidade das mulheres negras. Minha experiência enquanto ativista do movimento de mulheres e o apoio de colegas negras e negros me ajudaram a encontrar alternativas: percebi que caberia a minha geração não somente criticar os clássicos, mas também produzir a bibliografia a que muitas de nós gostaríamos de ter tido acesso ao longo de nossa formação acadêmica.
Inspirada no trabalho da socióloga norte-americana Patricia Hill Collins, que oferece uma magnífica compilação da produção das mulheres negras dos Estados Unidos em seu livro “Pensamento Feminista Negro”, passei a me perguntar o que existiria de único e original nas formulações das negras brasileiras e constatei o potencial para emergência de um enorme campo de estudos, que me instigou, a estudar um grupo específico dentro da constelação maior de intelectuais negras: as ativistas de movimentos sociais. Collins assina o prefácio do livro, no qual contextualiza a produção atual das negras brasileiras.
As intelectuais negras colocam em xeque construções de gênero e raça fundacionais das ciências sociais. Por um lado, sua própria existência enquanto criadoras do conhecimento desafia tais estereótipos. Por outro, elas desenvolvem interpretações que analisam de forma mais precisa desigualdades e injustiças, além de valorizarem contribuições das mulheres negras para a sociedade. Desta forma, são capazes de consolidar um pensamento social e político que dialoga efetivamente com a realidade de mulheres e da população negra em geral.
Em “Intelectuais Negras Brasileiras: Horizontes Políticos”, me dediquei a investigar como elas compreendem as opressões e quais são os pilares de suas propostas de transformação do mundo. Para isso, analisei escritos acadêmicos, materiais políticos e entrevistas de Jurema Werneck, Lélia Gonzalez, Lúcia Xavier, Nilza Iraci e Sueli Carneiro, em buscas de pontos em comum, noções de poder, gênero e raça que estão no centro da mobilização de mulheres negras pelo fim do sexismo.
Ainda que este grupo não esgote todo o universo e a riqueza das ativistas, sua produção permite encontrar traços característicos de um pensamento emergente. Ele é marcado, dentre outros elementos que apresento no livro, pela referência a empregadas domésticas, a líderes políticas (ialodês) e a orixás como fontes de inspiração e modelos de ação. Estas imagens individuais se somam a elementos de memória coletiva, epitomados pelo lema “Nossos passos vêm de longe” e organizados pelas noções de “diáspora africana” e “ancestralidade” que dão sentido positivo à negritude e à afro-descendência. Trata-se de um contraste importante, por exemplo, com escritos feministas.
Enquanto autoras proeminentes dos estudos de gênero têm empregado a noção de “interseccionalidade” para descrever identidades fluidas e instáveis, as intelectuais negras a utilizam como uma lente que permite identificar desigualdades produzidas por uma estrutura social perene e organizada a partir dos marcadores sociais de raça, classe e gênero. Mais do que teorizações complexas, buscam uma intervenção urgente e transformadora.
Estes alicerces servem de bússola para uma potente geração de estudantes, ativistas e artistas negras jovens que têm conquistado uma visibilidade sem precedentes no campo da cultura, da comunicação e da política.
*Ana Claudia Jaquetto Pereira é Doutora em
Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da UERJ.
Como bolsista Capes/Fulbright (2012-2013), estudou na Universidade de Maryland,
sob supervisão de Patricia Hill Collins. Desde 2009, atua em ONGs e organismos
internacionais na temática de políticas públicas e gênero e raça
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