ENTREVISTA: BENTO CUNHA

agosto 29, 2019

Bento Cunha é poeta, cronista, contista e hiperbólico demais para eufemismos. Utilizando os sentimentos comuns na construção de uma literatura intimista, busca o verdadeiro tom da vida nas coisas cotidianas. Possui textos em antologias de poemas e contos, além de publicar sua prosa e poesia nas redes sociais Instagram e Facebook. Agora, publica sua primeira obra solo pela Editora Letramento.
Em uma coletânea de 20 contos, o autor faz uma experimentação dos sentimentos através de urgências vindas de ações corriqueiras. É um livro contra a obviedade, onde o leitor é instigado a quebrar o estado comum e mergulhar em epifanias a fim de vasculhar o íntimo das emoções. 
Para conhecer um pouco mais sobre seu amor pela escrita e sobre "Agora e na hora do Abaporu", convidamos o autor para responder algumas perguntas:

1. O que escrever significa para você? Quando você se descobriu escritor?

Sou muito caótico, a escrita me ajuda a criar uma linha de raciocínio, é quando posso organizar o pensamento e ser espectador. Não significa, no entanto, que eu encontre “respostas” ou o arremate para o incômodo; às vezes eu preciso mesmo é a da minha própria compaixão, e a escrita me oferta isso. Por nascimento, sou imediatista – escrever acabou tornando-se n’uma espécie de freio quando estou atravessando a vida rápido demais. Escrever é um sinal de alerta, também.
Desde a infância gosto de escrever, tenho alguns prêmios já desta época; mas confesso que não me via como escritor, as possibilidades sempre pareceram irreais demais. Divulguei alguns textos apenas em 2013, em uma página – já desativada – do ‘blogspot’ e em alguns encontros artísticos e saraus. Depois, fiz-me de um hiato gigantesco. Contudo, sempre quis algo que fugisse da banalidade, eu estava cansado de ler as mesmas coisas, muitas preguiças literárias romantizadas onde a única coisa que parecia valer era a superficialidade das palavras. Eu queria dar às pessoas algo que gerasse incômodo, que pudesse ser lido por vários ângulos, então em 2017 criei um perfil no Instagram (@obentocunha) onde comecei a divulgar as crônicas, poemas e trechos de contos – foi quando disse: SOU ESCRITOR!

2. Seu livro “Agora e na Hora do Abaporu”, que está em pré-venda no site da Letramento, é uma obra de contos. O que você vê de especial neles? Qual o diferencial desta narrativa na transmissão de mensagens?

Este livro é uma espécie de oração – “(...) rogai por mim, agora e na hora do Abaporu. Amém”. Evoca um grito necessário: somos frágeis, existimos, as situações mais simples podem ser a chave de nossos traumas ou felicidades. 
Criei histórias de fácil identificação: o íntimo das emoções está na crueza das coisas simples. Pelo fato de termos o “olhar acostumado”, buscamos respostas em lugares distantes quando, na verdade, tudo o que precisamos é mudar as lentes. Os personagens só conseguem resolver suas questões depois de se permitirem aos sentimentos, depois de se buscarem em espelhos metafóricos – e o melhor reflexo estava no cotidiano. 
Diferente do estilo das crônicas que eu também escrevo, e que é mais objetivo, os contos me permitiram explorar facetas humanas que eu tinha receio, apenas pelo medo de me expor, de ser muito biográfico. Talvez porque eu ainda não compreendesse que não havia escapatória: se eu quisesse que as pessoas se identificassem com as histórias, eu precisava falar do que tínhamos em comum: ninguém foge aos pequenos detalhes, prazeres e tragédias dos dias.

3. De onde surgiu a inspiração para escrever os 20 contos presentes no seu livro? De que forma eles se relacionam com sua vida e sua rotina?

O livro “Agora e na hora do Abaporu” nasceu de um incômodo – foi quando percebi que a vida comum devorava a todos, sem exceção. Assim, a matéria-prima para as histórias foi o cotidiano, os pequenos atos – nas coisas simples repousavam as grandes questões. O dia-a-dia era cheio de situações que passavam quase nulas aos olhos, distantes – mas eram histórias que apenas careciam de polimento e revelação: dei forma aos sentimentos cotidianos, aqueles que acreditamos não sentir – seja por falta de tempo, modéstia ou até mesmo o medo.
Grande parte dos contos foi escrita como uma espécie de esvaziamento, seja através de uma confissão como em ‘O primeiro crime’ ou simplesmente projeções de sentimentos que encontro muita dificuldade em lidar: o luto, por exemplo, abordado em ‘A visita de Lourdes’ com personagens tão antagônicos – talvez porque eu esteja ali, nas duas pontas da história; a esperança, no conto ‘Clóvis’ – precisei criar uma história inteira apenas para sentir através de um personagem aquilo que eu não me permito. A partir daí, uma ida ao Mercado Central, sentar no banco de uma praça, cuidar de um cacto, tudo passou a ser uma espécie de mundo vivo, cheio de mensagens que apenas esperavam por suas leituras. Cheguei ao ponto de criar situações onde eu invejava os personagens por seus atos, como em ‘A espantosa descoberta de Rosa’. A rotina deu-me os contos, sem nada de extraordinário, só precisei transcrevê-los – e é aí onde resta a beleza.

4. O seu livro tem como premissa vasculhar o íntimo das emoções. Como isso foi feito? Como trabalhar as emoções no processo de construção desta forma de narrar?

Todos os contos partem da premissa de situações que podem ser vividas por qualquer pessoa, como ler um jornal, pular Carnaval, organizar uma mala de roupas, dar um mergulho... passados os primeiros instantes, fazia-se o desdobramento em epifanias – aquele momento não era mais tão ordinário como parecia – e eu precisei apenas incluir as indagações, fazer o que no dia-a-dia nós tememos, questionar o próprio rosto, a própria palavra, dizer as coisas que deveriam repousar em segredo. 
Assim, imagine que as emoções estivessem todas ali: acumuladas, esperançosas, outras tantas camufladas. Só removi os objetos de lugar, e então ficou o desconforto – na vida dos personagens ou do leitor. 
Claro, muita gente já falou sobre amor, coragem, tristeza e por aí vai... porém eu quis trazer os sentimentos por outra perspectiva: amor é cuidar de uma planta, saudade é revisitar notícias antigas, esperança é aceitar uma laranja, solidão é falar com pássaros, coragem é descobrir-se possível de atos extremos numa festa de aniversário, compaixão é acompanhar o outro durante os mergulhos... e assim, perceber que a dureza do tempo pode ser simplesmente dois velhos à sombra de três árvores.

5. Se pudesse resumir experiência de escrever a “Agora e na Hora do Abaporu” o que diria?

Escrever este livro foi uma experiência catártica, estou feliz com o resultado – mas o caminho foi trabalhoso, diversas vezes precisei reescrever alguns trechos a fim de conseguir a clareza e profundidade esperadas. Apesar de ter utilizado elementos do dia-a-dia, transformar uma emoção em palavras é ainda um trabalho hercúleo, porque as palavras pedem um ritmo único. A história também muitas vezes ganhava rumo próprio, como ao descrever a solidão de um personagem e, ao final, o solitário era eu – muitas vezes me incluí na narrativa sem intenção, mas não havia como sair, era uma peça que não permitia a remoção. Às vezes escrever é isto mesmo: é fazer parte.

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