Cultural: a violenta relação estabelecida através dos hábitos
julho 03, 2019Estamos em um universo paralelo, onde um grupo de indivíduos, apesar de minoritários em termos quantitativos, impõe suas características físicas pouco comum a outros sujeitos. Contrariando as leis sociais que disciplinam a igualdade de direitos, eles dominam através da violência sexual, disseminando, culturalmente, que todos somos inclinados a cometer esse tipo de atitude. Defendem que todos precisam orbitar no mesmo campo gravitacional que eles. No entanto, a maioria da população do lugar questiona: como isso seria possível já que seus crimes causam danos irreversíveis a sua sociedade e que respinga nas gerações que estão por vir?
É, nesse universo paralelo, que os agressores Saturno, Urano e Júpiter aprenderam a dominar e as vítimas Vênus, Marte e Terra descrevem seu sofrimento no livro “Silêncios que ecoam: corpos, dinâmica e campo gravitacional da Cultura do Estupro. Ambos contam, para você, leitor, de que modo suas vidas foram transformadas e desnormalizadas pelo aquilo que eles conhecem como Cultura do Estupro.
Apesar da referência a um mundo paralelo, as características, que você acabou de ler, sobre a violência sexual e a cultura do estupro são histórias de pessoas reais, brasileiros e brasileiras, que, como tantos outros e outras, partilham de experiências de um tipo de violência, vivida diariamente por mulheres no Brasil e mundo afora. A analogia é uma iniciativa fantasiosa de aproximar as pessoas a uma realidade iminente e culturalmente construída entre homens e mulheres em nossa sociedade.
Antes de mais nada, é preciso esclarecer que, apesar de sociabilizado recentemente em nosso país, o termo Cultura do Estupro já vem sendo utilizado desde 1970, quando, nos Estados Unidos, os movimentos feministas passaram a defender não só o direito pela igualdade de gêneros, mas a buscar a desnormalização do estupro na sociedade norte-americana.
Em 2015, o termo “Cultura do Estupro” foi amplamente difundido pelas redes sociais e ficou conhecido após a divulgação do caso do Estupro Coletivo em Castelo do Piauí-Pi. O fato chocou a opinião pública e teve repercussão internacional. Mais do que isso, trouxe a tona questionamentos que permeiam a busca por explicação desses atos como: “Porque homens acham que podem dominar corpos femininos através da violência sexual?” ou “Será mesmo que a roupa tem poder decisivo para a prática de uma violência sexual?”.
Para tentar entender de que maneira a sociedade chega a um crime de estupro, como é o processo traumático de vítimas, o que pensam agressores e de que modo as questões levantadas implicam e/ou tem poder de contribuir ou alterar esse cenário, é preciso primeiro compreender que, habitualmente, as pessoas são acostumadas a relacionar cultura com crenças tradicionais - como o Folclore -, o que demonstra um antagonismo muito forte do senso comum em aceitar a ideia de cultura como um comportamento imutável. A resistência para aceitar a adoção da nomenclatura Cultura do Estupro - que a cada 11 minutos leva uma mulher a ser violentada no Brasil - está no fato das pessoas não se reconhecerem seres culturais, que nas relações interpessoais desenvolvem hábitos para sua convivência, cultuando uma forma de vida que transforma a dinâmica educacional de meninos e meninas em consequentes violências, inclusive sexual.
Izabel Solyszko, assistente social e professora doutora em Serviço Social pela Universidade do Rio de Janeiro – UFRJ, explica a necessidade de fazer uso do termo cultura junto à ação do estupro: “Nossa maneira de ser, de pensar e de agir não está solta no mundo, mas faz parte de uma cultura”. Ou seja, somos seres culturalmente ensinados a normalizar o crime de estupro em nossa sociedade. É importante mostrar que o estupro não diz respeito ao desejo sexual e sim à vontade de impor uma dominação hierárquica que classifica homens como superiores a mulheres. Solyszko deixa clara ainda a relação que existe entre sexo e homens:
“Se entendo que homens não nascem violentos, mas que são ensinados a serem violentos; se entendo que homens não são animais loucos por sexo, mas são estimulados desde crianças a não reprimirem a sua sexualidade; se entendo que numa sociedade patriarcal como a que vivemos homens são mais valorizados do que as mulheres; e que tudo que é masculino é visto como um direito universal e tudo que é feminino é desvalorizado, entendo que a violência contra a mulher é fenômeno social”.
Mesmo reconhecendo esse fato, em grande parte da população brasileira, ainda existem dúvidas do que, além dos conceitos educacionais, seria essa Cultura do Estupro. Então,vamos exemplificar:
Quando uma mulher sofre uma violência sexual, em vez do agressor ser julgado, as primeiras insinuações são sobre o comportamento da vítima, a roupa que usava no momento do crime, o local que estava, se tinha ingerido bebida alcoólica. Recentemente, um caso de denúncia de estupro contra um jogador brasileiro, deixou claro esse cenário, uma massa julgou e já sentenciou qual o lugar da mulher nesse cenário, antes mesmo que o próprio sistema judicial o fizesse. A junção desses fatores e muitos outros nos permite formular uma sentença matemática que explica porque tantas mulheres resolvem não denunciar esse tipo de crime: Culpabilização + desconfiguração da integridade feminina = silêncio. A realidade é que nenhuma dessas características citadas levou qualquer vítima a ser agredida sexualmente.
A violência sexual só aconteceu pois existe um homem que se torna agressor no momento que aciona algum ensinamento, culturalmente repassado para ele, que reforça a existência de uma relação de superioridade masculina em detrimento a uma mulher. A forma como ele faz isso foge à regra de seres racionais, mesmo tendo a consciência do que está fazendo. Estupro é uma decisão tomada por alguém, e esse alguém nunca é a vítima.
Contrário ao que se imagina, a decisão de um estupro não é tomada pela figura de um monstro, mas de um homem comum. É preciso humanizar essa figura do agressor para aproximá-lo à realidade que já é vivenciada. Jon Krakauer deixa bem claro esse conceito no livro “Missoula”, ao entrevistar um especialista em violência sexual.
“Os estupradores seriais escondidos em plena vista entre nós, explicou Lisak, nutrem todos os mitos e concepções equivocadas habituais sobre estupro. Além disso, agora temos dados que mostram que eles são mais narcisistas que a média. Então eles estão presos em sua própria visão de mundo. Falta-lhes a capacidade de ver o que eles fazem da perspectiva das vítimas. Não é como se já tivessem passado algum tempo pensando em como seria estar desmaiado e acordar sendo estuprado. Não é como se alguma vez tivessem se perguntado: ‘Como eu me sentiria se eu adormecesse, alguém subisse em cima de mim e me penetrasse com o pênis ereto?’. Estupradores não fazem isso. Eles vivem em um mundo próprio, e no mundo deles há com frequência um tremendo senso de direito”.
É exatamente isso que torna toda a Cultura do Estupro ainda mais grave, por isso ela resiste a gerações e ainda hoje se fortalece. Mesmo a compreensão humana tendo evoluído e alcançado grandes descobertas, como levar um homem a lua ou o descobrimento da estrutura do DNA e da eletricidade. Ainda assim, não sabemos como fazer um homem respeitar a figura e a decisão de uma mulher.
Dayane Késia Alves da Silva nasceu em 1992, na cidade de Campos Sales, mesorregião do Sul Cearense. É Jornalista formada pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB, onde iniciou seus primeiros estudos sobre Cultura do Estupro. “Silêncios que ecoam” é seu primeiro livro e a forma como ela encontrou de contribuir positivamente com a evolução da sociedade, atrelando características intrínsecas a sua personalidade como o senso de investigação, a escrita e a vontade de colaborar com a igualdade social.
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