ENTREVISTA: Ana Castro

maio 13, 2019


O desaparecimento é um crime continuado, uma tortura sem fim para familiares e amigos. Existem muitas maneiras de contar a história de alguém, Ana Castro escolheu costurar aos poucos a narrativa da vida de Ana Rosa Kucinski, no livro Kaddish – Prece por uma desaparecida.

O que aconteceu com Ana Rosa e seu marido, Wilson Silva, ainda é nebuloso. Décadas depois do dia 22 de abril de 1974, não se sabe com exatidão como um casal desapareceu em plena luz do dia, no maior centro da cidade do país. Nem para onde os dois foram levados. Ou como morreram. Há versões. A que a autora conta é a mais factível.

O livro de 200 páginas foi produzido com base em testemunhos de amigos, familiares e colegas de Ana Rosa. A autora realizou uma extensa pesquisa sobre a sua vida, usando também de como cartas, postais, fotos, certidões. Registros de uma vida. Receitas de médico, bilhetinhos em guardanapos. Declarações de amor e de amizade. Esses documentos foram um grande tesouro.  Foi assim que a voz da Ana Rosa finalmente foi ouvida.

Nessa entrevista, Ana Castro contou um pouco mais para gente sobre o processo de escrita do livro.


De onde surgiu a ideia e a iniciativa de escrever a biografia de Ana Rosa Kucinski?
O irmão da Ana Rosa, o jornalista e escritor Bernardo Kucinski, havia publicado o livro K - Relato de uma Busca. O romance conta a história da busca pela irmã desaparecida, do ponto de vista do pai. Apesar de ser ficcional, o livro foi baseado na vivência pessoal dele e muitos dados são reais. Depois da publicação, Bernardo decidiu que era necessário contar a história da irmã, para que ela fosse mais do que um nome em uma lista de desaparecidos políticos. Mas ele sentia que não tinha condições emocionais para escrever essa história.
É nesse momento em que eu entro na jogada. Um amigo em comum nos apresentou e me indicou para escrever a biografia da Ana Rosa. Acontece que eu estava grávida de 8 meses, me preparando para a qualificação do doutorado e terminando de editar meu primeiro documentário, Coratio. Agradeci ao convite, expus que naquele momento eu não teria condições e que entenderia se ele quisesse procurar por outra pessoa. E também disse que eu nunca tinha escrito um livro antes. Até hoje não sei explicar porque o Bernardo decidiu me esperar. Cinco meses depois de nosso primeiro contato, eu comecei a pesquisa para o livro.


Como se conta a história da vida de alguém? Qual foi o maior desafio?
Existem muitas maneiras de se contar a história de alguém. Eu demorei muito para descobrir qual seria o meu caminho. Decidi ser uma costureira de narrativas. Cada entrevista, cada informação era como se fosse um retalho. E cabia a mim costurar esses pedaços de pano que estavam espalhados por aí. A minha voz não aparece. Mas a minha costura sim.
O maior desafio era contar sobre a vida de uma pessoa sem tê-la conhecido e sem que ela pudesse dar a sua opinião. São muitas questões éticas que se levantam. Até que ponto é correto contar tudo o que se descobre? O que se espera com essa obra? A quê e a quem ela se destina?
Chegou um momento em que eu percebi que era a pessoa viva que mais conhecia a Ana Rosa, apesar de ter nascido 6 anos depois de seu desaparecimento. Cada pessoa entrevistada conhecia uma pequena parte da Ana Rosa, apenas aquela parte que ela demonstrou no período em que conviveram. Mesmo o irmão Bernardo não sabia muitas coisas sobre a irmã. Coube a mim o papel de juntar os retalhos e costurar. Sabendo que a manta ainda teria muitos buracos que são impossíveis de se costurar. As lacunas em um desaparecimento são eternas.

Como funcionou sua pesquisa?
Tudo começou com alguns nomes que o Bernardo me passou. De alguns ex-namorados e amigos da Ana Rosa. Com esse papel eu comecei a ligar para as pessoas. Cada entrevista me levava a mais pessoas e revelava uma nova faceta da Ana Rosa e das informações. Me ajudou bastante eu já trabalhar com o tema da ditadura militar há alguns anos e ser tema da minha tese de doutorado. Eu conhecia o contexto e muitas das pessoas com quem ela conviveu.
Uma outra parte tão importante quanto as entrevistas foram os documentos que o Bernardo e alguns amigos me passaram: cartas, postais, fotos, certidões. Registros de uma vida. Receitas de médico, bilhetinhos em guardanapos. Declarações de amor e de amizade. Esses documentos foram um grande tesouro. Foram eles que me ajudaram em uma parte muito importante do livro: que a voz da Ana Rosa fosse ouvida. Já que não era possível entrevistá-la, colocar as suas cartas foi a maneira que encontrei para que pudéssemos saber o que ela pensava.

Foi difícil escrever a biografia de uma pessoa que está desaparecida?
Nos momentos de difíceis eu me lembrava de um conselho que recebi da grande Ecléa Bosi quando contei sobre o projeto do livro. Ela me disse que escrever a memória de alguém é trazê-la à vida novamente. É uma forma de perpetuar a vida dos que se foram.
A grande questão dos desaparecidos em geral é que eles ocupam um não-lugar. Não puderam ser velados, não foram dados como mortos, nem tampouco sabe-se por quanto tempo permaneceram (ou se estão) vivos. Esse não-saber é o que mantém a ferida aberta em todas as pessoas.
No caso dos desaparecidos políticos da ditadura civil-militar no Brasil, mesmo depois de décadas do desaparecimento, ainda há alguma esperança de se saber o mínimo possível, como por exemplo a data e local de morte. Mas nem isso é dado aos familiares.
O desaparecimento é um crime continuado, uma tortura sem fim para familiares e amigos. Joga no colo deles uma culpa que eles não têm: e se eu tivesse feito tal coisa, e se tivesse procurado em tal lugar antes desse, se tivesse falado com fulano ou sicrano. A culpa do desaparecimento forçado é dos militares. Eles é quem deveriam carregar esse fardo e responsabilidade. E serem julgados por esses crimes.


Para você, como foi lidar com os familiares e conhecidos de Ana Rosa? Foi difícil separar a existência dessas pessoas dos personagens que eles poderiam se tornar na história?
Um dos maiores desafios é entender que quando falamos de biografia estamos trabalhando com a memória de muitas pessoas. Do que elas fizeram, como foram e, principalmente, como gostariam de ser lembradas. Em todas as entrevistas eu escutava as histórias com esse cuidado. O testemunho que a pessoa me dá é válido, mesmo que ela confunda datas ou nomes. O testemunho da pessoa é válido mesmo quando é perceptível que a pessoa está me contando a história da maneira que ela gostaria que fosse e não, muitas vezes, como foi realmente.
A memória não é algo estático. Ela se movimenta, se constroi. Alimentamos o passados com fotos, com outros relatos, com nosso amadurecimento e novas percepções de atitudes antigas. O meu papel, ao escutar as histórias, era honrar dois compromissos: checar a veracidade de dados essenciais quando possível e, quando não era possível, procurar outras pessoas que pudessem corroborar a história contada. O segundo compromisso era dar protagonismo a quem estava contando a história. Por isso o livro é cheio de aspas. Coloquei literalmente o que as pessoas me contavam. A minha costura era feita com o contexto, com o contraponto. Mas não cabia a mim julgar os testemunhos ou as atitudes das pessoas.

O que mais te marcou sobre a história de Ana?
O que mais me doeu em tudo foi perceber que aquela mulher cheia de vida e de amigos, chegou ao final da vida muito solitária e com medo. Apesar de ser difícil entender algumas escolhas dela, eu a vejo como uma mulher única, coerente com si mesmo e leal. Era culta, direta, generosa.

Qual você acha que é a importância desse livro nessa fase frágil da política brasileira? 
Vivemos um momento em que há uma disputa de narrativa muito grande. E a ditadura civil-militar está no centro dessa disputa. Acho que temos o dever de dar voz às histórias que ainda não foram contadas. E são muitas.  Acredito que o livro cumpra esse papel.
Gerações vivem uma ferida aberta. Precisamos oferecer plataformas para que essas pessoas falem, para que se sintam seguras. Só podemos ser um país grande e forte quando reconhecermos nosso passado e assumirmos os erros.

Conte-nos um pouco da sua trajetória. Quando você se descobriu no mundo da escrita até começar a escrever Kaddish – Prece de uma desaparecida?
Sou jornalista há quase 20 anos. Sempre escrevi. Seja profissionalmente ou por prazer. Trabalhei em redações de revistas, de jornais e de televisão. Depois do nascimento da minha primeira filha eu decidi mudar um pouco de trajetória. Fui fazer um doutorado na ECA - USP e comecei a trabalhar como repórter freelancer e a produzir e dirigir um documentário sobre a violência de Estado da época da Ditadura até os dias de hoje. Foi nesse momento que comecei a ter mais autonomia na escrita.
Escrevi muitos capítulos de livros, reportagens, textos pessoais e de análise de contexto. Mas o Kaddish foi a minha primeira experiência de autora. De ser a protagonista da escrita do começo ao fim. Foi uma aventura.

Por fim, quais os projetos que você têm para o futuro? Existe alguma outra história que você gostaria de contar?
Tenho um sonho futuro de escrever um romance. Acredito muito na arte dos encontros. Não havia planejado escrever o Kaddish, mas acolhi o convite com muita gratidão e sabendo do privilégio que seria contar essa história.
Sigo pelo caminho prestando atenção nas outras histórias que ainda não foram contadas e que precisam de ouvidos atentos. Quero colocar minha energia e meu conhecimento em favor disso.

Ana Castro é jornalista há quase 20 anos. Sempre escreveu, seja ou por prazer. Trabalhou em redações de revistas, de jornais e de televisão. Depois do nascimento da sua primeira filha, decidiu mudar um pouco de trajetória. Foi fazer um doutorado na ECA – USP, começou a trabalhar como repórter freelancer e a produzir e dirigir um documentário sobre a violência de Estado da época da Ditadura até os dias de hoje. Durante sua vida, escreveu muitos capítulos de livros, reportagens, textos pessoais e de análise de contexto. Mas o Kaddish foi sua primeira experiência como autora, onde foi protagonista da escrita do início ao fim.  

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