A importância das adaptações dos clássicos

maio 30, 2019



A releitura de clássicos é uma conversa que atravessa o tempo e o espaço, um diálogo que busca resgatar essências universais e conectá-las com o público e o contexto do local.

O lindo desenho da Bela Adormecida da Disney, lançado em 1959, é uma adaptação da história dos Irmãos Grimm publicada em 1812, que é uma adaptação da história de Charles Perrault de 1697, que é uma adaptação da história do italiano Giambattista Basile de 1634, que certamente o adaptou de algum conto anterior.

Como diz o ditado: "quem conta um conto, aumenta um ponto". Então cada versão muda um pouco a história: uma traz 12 fadas, outra só 3; em uma, a história não termina com o casamento, continua a partir dali; em algumas versões, há canibalismo, em outras até necrofilia; na versão da Disney, o príncipe pode até "parecer encantado", na de Basile era um grande criminoso.

Outro exemplo com origem mais longínqua é a Cinderela: uma madrasta proíbe nossa heroína de ir ao baile para garantir o brilho de suas outras filhas, não tão bonitas. A heroína consegue apoio de seres mágicos, vai ao baile, foge ao ser descoberta e perde um dos sapatos na fuga; um príncipe o encontra, sai em busca da dona e se apaixona por aquela única que tem o pé do tamanho certo.

Seria da Disney essa história, certo? Errado! Trata-se um conto chinês de 850 d.C. Na verdade, a essência dessa narrativa possui mais de 345 versões catalogadas ao longo da história. Em 77 delas não era a madrasta que maltratava a heroína, mas o próprio pai (incluindo até incesto). As mudanças também têm temperos regionais: em uma versão filipina, é um caranguejo mágico que ajuda ela a vestir não um sapatinho, mas um chinelo! Numa versão sérvia, é uma vaca mágica que a ajuda. Em versões alemãs e turcas, a Cinderela é, vejam só, um homem.

"A fábula, qualquer que seja sua origem, está sujeita a absorver alguma coisa do lugar em que é narrada - uma paisagem, um costume, uma moral, ou então apenas um vago sotaque ou sabor daquela região", diz Ítalo Calvino.

Comecei a traduzir essa nova versão do Pequeno Príncipe mais como um exercício de escrita criativa. Uma brincadeira de "e se?". E se, em vez de um aviador que cai no deserto, tivéssemos uma astronauta que cai em Marte? Estamos a menos de dez anos da primeira viagem tripulada ao planeta vermelho. Se escrevesse o livro agora no século XXI, será que Saint-Exupéry, apaixonado por viagens pelo céu como era, não teria ousado uma viagem pelo espaço?

Durante a tradução, eu me sentia colaborando com o autor nesse que é um dos meus livros favoritos da infância. "Co-laborar", palavra tão na moda hoje, é trabalhar junto, buscar saídas para problemas por meio do diálogo, da troca de ideias tão necessária no mundo. Os romanos criaram seus mitos colaborando com os gregos e assim adaptaram para Dionísio, o deus do vinho, Baco, e transformaram Ares, deus da colheita e da guerra, em Marte.

Enquanto me apoiava nos ombros desse gigante chamado Antoine de Saint-Exupéry, eu sentia uma emoção boa, a escrita fluía e as ideias pipocavam. E se, em vez de um príncipe, tivéssemos uma princesa como protagonista? E se adicionássemos mais conceitos de astrofísica? E se inseríssemos tecnologia do dia a dia dos jovens de hoje na história? Era como se conversássemos sobre nossas escolhas, decidindo em conjunto o que modificar ou excluir ou adicionar.

Acredito que ele acharia interessante o resultado em que chegamos juntos. Seus diálogos, ensinamentos e frases inesquecíveis permanecem (ele bateu o pé sobre isso!), mas agora com temperos, situações, cenários, personagens e até um final diferente. Digamos que um final abrasileirado e machadiano...

Esperamos que vocês, novos leitores desse clássico, também gostem desta releitura!

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Para quem desejar saber mais sobre adaptações, indicamos "O lado sombrio dos contos de fadas", de Karin Hueck, que possui uma pesquisa riquíssima sobre o assunto (e que serviu de base para esse post)
Para outras adaptações modernas do Pequeno Príncipe, sugerimos a ótima peça "O Pequeno Príncipe Preto", de Rodrigo França. E também o lindo livro "O Pequeno Príncipe em Cordel", de Josué Limeira.

Leandro Franz é o autor de A Pequena Princesa, uma tradução criativa e moderna de um clássico inesquecível, que reflete a sociedade como ela é hoje. A Pequena Princesa traz a representatividade para a literatura de uma maneira doce e encantadora, com uma menina no papel de protagonista. Leandro é escritor e roteirista. Possui outros livros e roteiros escritos para teatro, TV e cinema. Foi premiado em diversos concursos literários, sendo vencedor da Frapa e 2º colocado no Guiões em Portugal.

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