Uma reflexão sobre os aniversários de 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e os 50 anos do AI-5

fevereiro 27, 2019


Essa semana lembraremos duas datas importantes: os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e os 50 anos do Ato Institucional n. 5, que marcou o início da fase mais cruel e sangrenta da Ditadura Civil-Militar.

Depois de 70 anos, está claro que não apenas o discurso sobre os Direitos Humanos precisa se renovar, mas o próprio conceito em si. A ampliação dos direitos coletivos, das lutas identitárias, do fortalecimento das minorias sociais. A globalização econômica com livre circulação de dinheiro e empresas, mas com severas restrições para pessoas. Novos fluxos migratórios, milhares de refugiados de guerras, desalojados por questões ambientais causadas pelo aquecimento global. O neoliberalismo econômico que agrava a cada dia o abismo entre pobres e ricos. O medo e insegurança das grandes cidades. A busca por soluções mágicas para problemas complexos. Como os DH vão responder a essas e tantas outras questões fundamentais do nosso tempo?

Se a Declaração dos Direitos Humanos parece ter esmaecido com o passar do tempo, o AI-5 continua vivo e forte no dia-a-dia dos brasileiros. A tortura ainda é prática recorrente. Se na ditadura o inimigo era o subversivo, o comunista, o guerrilheiro, qualquer pessoa que pensasse diferente da ordem imposta, hoje quem padece esse cotidiano na pele são crianças, jovens, homens e mulheres que vivem nas periferias, em geral negros e pobres, a população carcerária e seus familiares, militantes de movimentos sociais, manifestantes, populacao LGBTQ+.

A continuidade desses crimes deve-se muito à impunidade. O fim da ditadura veio com o sabor amargo de uma anistia que perdoou as vítimas e também os algozes. Mesmo sabendo-se os nomes de torturadores, de médicos que forjaram atestados de óbito, de policiais, civis e políticos que apoiaram a prática da tortura, esses criminosos nunca foram acusados, processados e julgados. Muitos, ainda vivos, se aposentaram e recebem pensão com o nosso dinheiro.

Como ativista dos Direitos Humanos e pesquisadora sobre a Ditadura eu sinto que nunca foi tão urgente falar sobre os dois assuntos. A importância das efemérides não está apenas em marcar o tempo. Nestas datas temos a oportunidade de refletir.

Como conciliar esses dois temas? Como tornar os Direitos Humanos uma luta na qual todos e todas se sintam incluídos e engajados? Como denunciar a violência de Estado que se perpetuou desde o AI-5? Acredito que a memória é um caminho importante, já que o esquecimento favorece a perpetuação da violência. Mal citando Hannah Arendt, o mal se torna banal com a ação de poucos e a omissão de todos os outros.

A memória, irmã da tradição, tem esse papel fundamental: manter presente no consciente coletivo o caminho que a humanidade percorreu até chegar ao agora, único tempo em que vivemos. Ao ouvir as palavras do passado, somos capazes de construir nosso presente e saber onde pisamos. E reescrever o que for preciso.

Walter Benjamin, em seu famoso texto sobre o conceito da história, afirma que

“somente a humanidade redimida obterá o seu passado completo. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o seu passado tornou-se citável, em cada um de seus momentos. Cada um dos seus momentos vividos transforma-se numa citation à l´ordre du jour – e esse é justamente o dia do juízo final”.

Que possamos nos tornar redimidos, sem medo de trazer à memória cada fato da nossa história, tanto o que pode nos dar esperança, quanto o que nos impele a resistir.

Ana Castro é autora do livro Kaddish – Prece para uma desaparecida, que conta a história de Ana Rosa Kucinski Silva. Uma das 210 pessoas que ainda estão desaparecidas, desde a época da ditadura civil-militar. É mãe da Tarsila e do Ernesto. Também é pesquisadora sobre livros, repressão e memória. Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Recebeu seis prêmios como jornalista, tendo atuado na TV Globo, na Pública – Agência de Jornalismo Investigativo, no UOL, entre outros. Produziu e dirigiu o documentário Coratio – sobre a violência de Estado da ditadura aos dias de hoje. Acredita que a memória é o que nos une e que contar histórias é um ofício sagrado.

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